Thaís Comassetto Felix 2
INTRODUÇÃO
O presente estudo analisará criticamente a sistemática das audiências de suspensão condicional do processo penal no Brasil em comparação com as audiências de suspensão do procedimento penal chileno. Assim, demonstrará que na prática forense brasileira tais atos são considerados meramente burocráticos, automáticos e sem espaço para insurgência acerca das condições da ação do caso penal em questão.
De tal modo, verifica-se a mitigação da oralidade, a qual deveria ser observada, em especial nos processos perante os Juizados Especiais Criminais, segundo determinação legal. Desta forma, criticará a ritualística das audiências de suspensão condicional do processo ocorridas no âmbito do Poder Judiciário do Estado do Rio Grande do Sul sob a perspectiva chilena.
O ato de aceitação de proposta de suspensão condicional do processo representa para a defesa do acusado a certeza de que (1) estão presentes as condições da ação, (2) há risco de condenação e (3) o denunciado cumprirá seus termos. Para o acusado significa a aceitação de punição antecipada e reduzida, vinculação ao processo pelo período de dois anos, acrescidos de sensação de injustiça, diante da impossibilidade de apresentar qualquer insurgência quanto à ação penal.
Deste modo, fica a sensação de que ou o sujeito aceita a suspensão, ou corre o risco de uma eventual condenação criminal (muitas vezes injusta). A partir de tal cenário, analisará o impacto que a mitigação da oralidade causa no sistema dos juizados e se é possível considerarmos que a suspensão condicional do processo pode ser tida como um acordo entre as partes.
Em contraponto, exporá como se desenvolve o mesmo “instituto” no Chile a partir da análise da legislação daquele país, da revisão doutrinária e do que tivemos a oportunidade de presenciar nas audiências assistidas em outubro de 2019 perante os Juizados Penais de Santiago do Chile. Ao final, proporá uma medida a ser adotada pelos magistrados brasileiros de forma a dar efetividade ao critério da oralidade determinada pela Lei nº 9.099/95.
A legislação brasileira relativa aos juizados especiais já soma vinte e quatro anos de vigência, contra dezenove anos do Código de Processo Penal chileno. Assim, mostra-se relevante a análise crítica acerca da mitigação da oralidade nestes atos em comparação com a prática chilena.
- DA AUDIÊNCIA DE SUSPENSÃO CONDICIONAL DO PROCESSO NO BRASIL
A suspensão condicional do processo é regida pela Lei nº 9.099/95, a qual dispõe sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais. Os artigos 2º e 62 expressam os “critérios” pelos quais os processos serão conduzidos no âmbito dos Juizados, quais sejam: oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade.
O presente trabalho estudará acerca da oralidade, porém, sob o contexto específico da audiência de suspensão condicional do processo. Antes de adentrar na temática, importante referir que a suspensão condicional do processo está prevista no artigo 89 da Lei n° 9.099/95 e é aplicável aos crimes em que a pena mínima cominada for igual ou inferior a um ano.
É proposta pelo Ministério Público quando do oferecimento da denúncia e seu período pode ser de dois a quatro anos. O acusado deve atender aos requisitos objetivos para sua concessão: não ostentar condenação por outro crime ou não ser réu em outro processo criminal e atender aos requisitos que autorizariam a suspensão condicional da pena, previstos no art. 77 do Código Penal.
O parágrafo primeiro do artigo 89 ressalta que a proposta deve ser aceita pelo acusado e seu defensor na presença do Juiz, o que significa dizer que ocorrerá em audiência. Assim, com a aceitação da proposta, o magistrado receberá a denúncia e suspenderá o processo pelo período de prova (de dois a quatro anos).
A proposta poderá abarcar quatro ou mais condições: reparação do dano, proibição de frequentar determinados lugares, proibição de ausentar-se da comarca onde reside sem autorização do Juiz e comparecimento pessoal e obrigatório a juízo, mensalmente, para informar e justificar atividades. A suspensão poderá ser revogada se durante o período de prova o beneficiário for processado por outro crime ou contravenção, bem como se descumprir outra condição imposta. Expirado o prazo da suspensão, o Juiz declarará extinta a punibilidade.
A redação legal ora apresentada nos possibilita identificar a sistemática da audiência e o rito pelo qual ela se desenvolverá. A proposta da suspensão condicional do processo já é conhecida pelo denunciado, uma vez que este foi citado pessoalmente com a cópia da denúncia anexada ao mandado e no mesmo ato já foi intimado da data da audiência para manifestação sobre sua aceitação.
Quanto à marcação imediata de audiência quando do oferecimento de suspensão condicional do processo, entende Gustavo Badaró (2016, p. 641) que:
O juiz, contudo, não deverá sempre e automaticamente marcar uma audiência para verificar a possibilidade de aceitação da suspensão condicional do processo. Assim, se a denúncia ou queixa for inepta, se faltar pressuposto processual ou condição da ação, ou ainda se estiver ausente a justa causa, o juiz deverá rejeitá-la (CPP, art. 395, caput), em vez de designar audiência para aceitação da proposta.
O primeiro ato da audiência será relativo à aceitação da proposta, em caso positivo, o Juiz receberá a denúncia e suspenderá o processo. Em caso negativo, o denunciado terá que responder à acusação em dez dias.
Verifica-se que mesmo com a aceitação da proposta a denúncia será recebida, ou seja, caberá ao magistrado analisar se as condições da ação estão presentes. Ocorre que é neste ponto que a oralidade desta audiência resta mitigada.
A suspensão do processo foi aceita pelo réu, o que significa dizer que a instrução não iniciará, porém, neste instante a denúncia ainda não foi recebida pelo Juiz, o qual, segundo determina a Lei, receberá assim que for declarado o aceite, presentes ou não as condições da ação. Nestes casos, a verificação das condições da ação por parte do Juiz passa a ser considerada como aspecto secundário do processo. Diante desses contextos que Alberto Binder (1993, p. 223) refere que “un proceso correctamente estructurado tiene que garantizar que la decisión de someter a juicio al imputado no sea apressurada, superficial o arbitraria.”
A defesa do imputado, ao aceitar a suspensão condicional do processo, abdica obrigatoriamente de eventual impugnação ao recebimento da denúncia? Pode o magistrado rejeitar a denúncia após a aceitação da proposta pelo réu?
O Superior Tribunal de Justiça já enfrentou o tema em 2008 quando do julgamento do HC nº 64.578 – DF, de relatoria do Ministro Paulo Medina. No julgamento restou reconhecido que a tipicidade da conduta deve ser analisada pelo Juiz no ato do recebimento da denúncia ainda que o denunciado tenha aceitado a proposta. Oportuno colacionar a ementa do julgado:
HABEAS CORPUS. DENUNCIAÇÃO CALUNIOSA. ANÁLISE DAS PROVAS DOS AUTOS.
POSSIBILIDADE. DENÚNCIA. RECEBIMENTO. ELEMENTO SUBJETIVO DO TIPO.
DOLO DIRETO. AUSÊNCIA. CONDUTA DE BOA-FÉ. CONSTRANGIMENTO ILEGAL CONFIGURADO. ORDEM CONCEDIDA PARA TRANCAR A AÇÃO PENAL.
– A análise das provas, hipótese distinta da valoração, é imprescindível para afastar a hipótese de falsidade nas informações prestadas pelo paciente, sob pena de não chegar a uma decisão de mérito.
– A tipicidade da conduta deve ser analisada no ato de recebimento da denúncia pelo juiz, pouco importando que o paciente tenha aceitado a suspensão condicional do processo.
– A aplicação do rito da Lei n.º 9099/95 ou qualquer instituto despenalizador dela constante, não desobriga o Juiz a averiguar a regularidade formal da acusação, assim como sua viabilidade, porquanto seria uma afronta ao princípio do devido processo legal e seus consectários.
– O delito de denunciação caluniosa reclama, para sua configuração, dolo direto em relação ao conhecimento da inocência do acusado, não bastando o dolo eventual.
– Hipótese em que o paciente, após certificar-se da veracidade dos fatos ocorridos e com absoluta convicção de tratar-se de crime, dirige-se à delegacia para narrá-los.
– Não emerge dos autos qualquer indício de que o paciente tenha agido para prejudicar a vítima do crime, em tese, de denunciação caluniosa.
– Ordem concedida para trancar a ação penal. (HC 64.578/DF, Rel. Ministro PAULO MEDINA, SEXTA TURMA, julgado em 21/09/2006, DJe 03/11/2008).
Quanto à possibilidade de o denunciado insurgir-se contra as condições da ação após a aceitação do “acordo”, já se posicionou o Supremo Tribunal Federal em 2005, conforme ementa:
PROCESSO – SUSPENSÃO – HABEAS CORPUS. A suspensão do processo, operada a partir do disposto no artigo 89 da Lei nº 9.099/95, não obstaculiza impetração voltada a afastar a tipicidade da conduta. (HC 85747, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Primeira Turma, julgado em 21/06/2005, DJ 14-10-2005 PP-00012 EMENT VOL-02209-2 PP-00380).
Se a oralidade fosse plena os problemas atinentes ao recebimento da denúncia por ocasião da aceitação da proposta seriam minimizados. Saulo Murilo de Oliveira Mattos (MATTOS, 2018, p. 26) esclarece
(…) que a oralidade não se resume ao fluxo contínuo da palavra em um sistema de audiências orais, em que as partes (acusação e defesa) expõe seus argumentos para que o juiz decida naquela hora em que o contraditório está presente, caloroso e umidificado pelos argumentos dos contendores. A realização dessa dimensão oral já seria um avanço para o processo penal brasileiro.
Porém, o que ocorre no cotidiano forense é que a proposta acusatorial está lançada, cabe à defesa aceitar ou não. O limite de barganha é restrito. Portanto, falacioso o argumento de que se trata de um acordo. Na prática há pouca (ou nenhuma) margem para negociação.
Aury Lopes Jr. (2010, p. 236) ressalta que “não se pode esquecer que a medida insere-se na lógica do consenso, não apenas no sentido de que o réu não é obrigado a aceitar a proposta, mas também na perspectiva de que poderá negociar a duração e demais condições.” Geraldo Prado (2005) ao analisar os acordos penais refere que
Os modelos consensuais da atualidade, portanto, estão em um meio caminho. Inspirados, por um lado, na ideologia da inquisitoriedade, organizam o procedimento de sorte a torná-lo mais célere, para tanto requisitando o consentimento do próprio suspeito ou acusado. Limitados, por outro lado, pelas garantias constitucionais acima referidas, só servem ao direito processual penal do Brasil para evitar a aplicação de pena de prisão e, assim, reduzem o nível de violência que normalmente marca o funcionamento dos Sistemas Penais da periferia.
Além disso, presencia-se muitas vezes a banalização do instituto, quando, durante a audiência, magistrados e promotores de justiça referem ao imputado que (1) aquele momento não é destinado para sua oitiva, portanto, não se tratará sobre os fatos (2) a aceitação da proposta não representará a aplicação de uma pena (como se não significasse uma pena para o réu o fato de, antes de tudo: figurar como denunciado, receber a visita de um oficial de justiça em seu domicílio, comparecer perante um juiz, apresentar-se mensalmente em juízo por período de dois anos, justificar atividades, impossibilidade de ausentar-se da comarca por determinado período ou ter que pedir autorização para tanto, dentre outras punições “embutidas”).
É desta forma que se desenvolve a audiência de suspensão condicional do processo no Brasil em um procedimento que deveria ser conduzido pelo critério da oralidade. Este cenário traz ao acusado a ideia de que, ou ele aceita a proposta nos termos que estão postos, ou enfrenta o risco de sofrer uma condenação e, assim, terá ao menos a possibilidade de alguns momentos de fala nos autos.
- A AUDIÊNCIA DE “SUSPENSIÓN CONDICIONAL DEL PROCEDIMENTO Y ACUERDOS REPARATORIOS” NO CHILE
O procedimento relativo à suspensão condicional do procedimento penal está previsto no parágrafo 6º, do Título I do Livro Segundo do Código de Processo Penal Chileno. Esta audiência integra a chamada “etapa intermedia” que é presidida pelo juiz de garantias e a presença do defensor do imputado é requisito de validade do ato:
A fase intermediaria se presta ao controle da acusação e à preparação do posterior juízo oral (de mérito). Assim, apresentada a acusação e oportunizado o exercício de contraditório pela defesa, o juízo de admissibilidade acontecerá em audiência. Admitida a acusação, o objeto do juízo é determinado por critérios orientados pela teoria do caso e são especificadas as provas que as partes pretendem produzir. (…) Nada obstante, na etapa intermediária também é possível a adoção de soluções alternativas ao caso penal. (SILVEIRA, 2017, p. 296).
Gonzalo Rua e Leonel Gonzalez referem que
Frente a un pedido en audiencia de suspensión del proceso a prueba, el juez debe verificar la presencia de las partes, interrogando en primer lugar al fiscal si ha formulado cargos – en cuyo caso, se lo invitará a que los enuncie sucintamente, a los efectos de tener presente el caso sobre el cual se buscará una salida al conflito -, o si los piensa formular en esta audiencia. Luego de ello, interrogará al fiscal o a la defensa, indistintamente, si han arribado a un acuerdo, verificando la conformidad de la contrria y el consentimiento del imputado con los términos propuestos. (2018, p. 96).
A suspensão condicional do procedimento será cabível se (a) a pena que pudesse ser imposta em eventual sentença condenatória não excedesse a três anos de privação de liberdade; (b) o imputado não foi condenado anteriormente por crime ou delito simples e (c) o imputado não possuir um acordo de suspensão condicional do procedimento penal vigente.
Quando a audiência de suspensão condicional do processo tiver sido requerida por simples petição de uma das partes, o juiz de garantias dará a palavra primeiramente à esta para que se manifeste sobre o pedido. Após, dará a palavra à parte contrária para que cheguem a um acordo. Nesta audiência o magistrado deve adotar uma postura proativa para que as partes acordem. (RUA;GONZALEZ, 2018, p. 96).
O juiz de garantias decretará o prazo para cumprimento das condições impostas, que não poderá ser inferior a um ano e nem superior a três. Durante este período não transcorrerá o curso prescricional.
As condições serão impostas pelo juiz de garantias de forma isolada ou cumulativamente. O rol está no art. 238 e as condições são similares às expressas no parágrafo 1º do art. 89 da Lei nº 9.099/95. Uma das distinções é que no Chile o imputado deve comparecer à sede do Ministério Público para justificar atividades e comprovar o cumprimento das demais condições e não perante o juízo.
Importante ressaltar que a audiência de suspensão condicional do procedimento penal no Chile é requerida pelo Fiscal (Promotor de Justiça), porém há o prévio acordo com o imputado, ou seja, não é um procedimento automático e de iniciativa exclusiva do Ministério Público, conforme ocorre no Brasil. Significa dizer que se trata de fato de um acordo, ainda que as condições sejam impostas pelo magistrado levando em conta as peculiaridades do caso e do imputado. Foi possível observar durante a assistência das audiências que as partes tratam do caso com o magistrado e que há espaço para manifestações dos imputados, o que, infelizmente, não se observa no cotidiano forense brasileiro.
Conforme ensina Binder
la oralidad es un instrumento, un mecanismo previsto para garantizar ciertos principios básicos del Juicio penal. Sierve, en especial, para preservar los principios de inmediación, publicidade del Juicio y personalización de la función judicial. En este sentido, se debe diferenciar muy bien lo que es um instrumento de lo que es un principio. Como hemo dicho, la oralidade es um instrumento, um mecanismo para alcanzar un fin (2000, p. 61).
A oralidade é plena, há partes em litígio e um juiz disposto a ouvir e decidir. Não há preocupação com a pauta apertada e com pilhas de documentos para serem examinados. Além disso, os juizados são administrados por um profissional capacitado e exclusivo para desempenhar tais funções, dentre as quais, a organização da pauta.
Quanto à oralidade no sistema processual chileno referiu Romulo de Andrade Moreira (2017, p. 196)
(…) é algo especialmente privilegiado. Os debates dão-se imediatamente entre o Ministério Público e a Defesa, sem deslealdades e em frente aos juízes. Tudo é decidido na mesma audiência. Não há pedido de vistas. Todos estão preparados para resolverem quaisquer questões jurídicas surgidas durante a audiência. O contraditório estabelece-se na audiência de maneira muito transparente. O Ministério Público respeita a defesa, compartilhando a prova, inclusive. Não há ocultação de provas, tampouco espaço para vaidades. Tudo é muito sereno e respeitoso. Cada um cumpre o seu dever.
No Brasil, em que pese a previsão legal quanto ao critério da oralidade, o ranço inquisitorial permanece hígido nos juizados especiais criminais. A denúncia, que deveria ser oferecida oralmente, segundo determina o art. 77 da Lei 9.099/95, é apresentada por escrito após a realização de audiência de proposta de transação penal:
Também percebe-se, a enfraquecer a proposta de oralidade nos Juizados Especiais Criminais, que as denúncias, quando oferecidas pelo Ministério Público, são feitas de forma escrita, reservada em gabinete, fora do que determina o artigo 77, caput, da Lei n. 9099/95, quando diz que a denúncia deve ser feita de forma oral. (MATTOS, 2018, p. 30).
A oralidade vai muito além da mera possibilidade de falar em juízo. Binder (2012) esclarece que
Quando falamos de “oralidade”, não estamos falando simplesmente sobre as atuações dos papéis cênicos em um espaço mais ou menos majestoso. Se trata de conseguir passar de um modelo administrativo de justiça baseado na diligência, na petição (que é o modelo das petições administrativas), a uma administração da justiça baseada no litígio.
Leonel González Postigo (2018, p. 32) ressalta que “a audiência oral é o centro do processo adversarial. Do ponto de vista da história, os primeiros avanços da reforma latino-americana foram dados pela introdução da oralidade na etapa de julgamento, como um mecanismo para dar transparência às decisões ali tomadas”.
Importante traçar um paralelo entre os processos tradicionais e os novos sistemas de ajuizamento:
Os processos judiciais tradicionais caracterizam-se por serem fundamentados de modo escrito e secreto através de expedientes ou pastas que continham todos os registros dos atos realizados durante o procedimento. Os novos sistemas de ajuizamento deixaram para trás essa forma de administrar a justiça e estabeleceram um sistema de audiências orais. Nele, todas as decisões jurisdicionais são feitas nas salas de audiências, às quais o publico interessado tem acesso sem limitação formal. Tais salas, no novo paradigma, se transformaram no local de trabalho dos juízes, os quais passaram a exercer função completamente do tradicional. Nessa primeira etapa, a oralidade foi introduzida somente na fase de julgamento, por ser necessária à transparência das decisões tomadas no momento mais importante do processo. (IBIDEM, 2018, p. 24).
O processo adversarial, como o próprio nome dita, é um processo de partes, sendo que a audiência oral é o seu centro. Leonel González Postigo (2018) complementa que “também poderíamos afirmar que a oralidade é uma metodologia que (a) reúne todos os atores envolvidos no caso, (b) permite a produção de informação, (c) admite o controle da contraparte, (d) gera informação de alta qualidade e, com efeito, (e) possibilita tomar decisões de alta qualidade”, e conclui que:
A oralidade, ao mesmo tempo, constitui um modelo de trabalho que torna a sala de audiências – em vez do gabinete privado – o espaço natural para o trabalho dos juízes e das partes. Por isso, costumamos afirmar que a dinâmica de litigação dos casos se reorienta até a sala de audiências como cenário no qual serão feitas as petições, apresentada a informação de respaldo e tomada a decisão jurisdicional pelo juiz, com base na informação que lhe seja entregue.
A partir de tais considerações, importante traçar um paralelo com o processo penal brasileiro para atentar que a produção escrita transmite falsamente a ideia de que o que está documentado traz segurança e, a partir disso, serão proferidas decisões justas e adequadas ao caso penal sob julgamento. Ocorre que, diversamente disso, a massificação de processos e as inúmeras folhas repetidas e outros documentos meramente burocráticos tornam o processo moroso, de difícil solução e, com isso, as informações de qualidade se perdem entre tantas outras desnecessárias e improdutivas folhas.
Ainda que os processos suscetíveis à suspensão condicional sejam, em sua maioria, menos volumosos, verifica-se que mesmo assim não há um cotejo entre os elementos já produzidos em contraponto com a peça acusatória quando do recebimento da denúncia pelos magistrados. Ademais, as informações trazidas pela defesa em audiência de suspensão condicional do processo não são levadas em consideração quando da análise do recebimento da denúncia sob a argumentação de que se confundem com o mérito e, assim, deveriam ser tratadas na instrução criminal.
CONCLUSÃO
Os problemas que enfrentamos diuturnamente no sistema judicial penal brasileiro ganharam maiores proporções após a imersão prática que fizemos no Chile em outubro de 2019. O nosso atraso no desenvolvimento de leis processuais mais democráticas, condizentes com o que prevê a Constituição Federal desde 1988, é explicado pela mentalidade inquisitória que todos nós possuímos, contra o qual é necessária uma mudança global na cultura judicial, como ocorreu no Chile e em diversos outros países da América Latina.
Nos dias em que estivemos no Chile percebemos o quanto o nosso sistema atual nos impossibilita o fair play, uma vez que há a sensação de ter sempre algo escondido por trás de todas aquelas folhas de processos. Não há, no Brasil, comunicação e lealdade entre acusação e defesa.
Essa dificuldade certamente tem a ver com a falta de paridade de armas e com a estrutura e aparelhamento desproporcionais entre Ministério Público e Defensoria Pública. Não possuímos um processo penal de partes.
Nossos processos são montanhas de folhas (os crimes estaduais no Rio Grande do Sul ainda são processados em autos físicos) com centenas de folhas repetidas, cópias de ofícios, de mandados e outras informações escritas desnecessárias para a solução do caso. O réu é um número de processo, o Judiciário brasileiro está inchado, burocratizado, no qual os magistrados cumprem inúmeros papéis e não somente ouvir e julgar.
Tais sintomas causam efeitos degradantes na prestação jurisdicional, que não possui condições de atender os casos penais da forma como deveria. O primeiro estágio processual em que se sente o abarrotamento do Judiciário é o recebimento da denúncia, ocasião em que é proferida a seguinte frase: “Estão presentes os requisitos do art. 395, do CPP. Recebo a denúncia ante a presença das condições da ação. Cite-se o réu.”
Além deste momento, percebe-se nas pautas de audiência dos juizados especiais que muitas vezes cada audiência tem previsão de duração de cinco minutos. É inadmissível uma justiça penal express, que mais parece cumprir metas do que resolver casos reais.
No âmbito dos juizados especiais criminais há uma gama de crimes sujeitos à tal jurisdição e isso denota o cuidado que o magistrado deve ter com os casos penais que se apresentam. Da exploração de jogos de azar a crimes ambientais há um universo de peculiaridades e soluções distintas.
Por isso, inevitável considerar-se cada caso isoladamente, sem que haja uma solução pré-determinada e automática para todos. Neste ponto, o critério da oralidade traria benefícios se fosse aplicado adequadamente.
As faculdades de Direito do Brasil não formam bons litigantes, não há em nossa formação disciplinas de oralidade, possivelmente em razão do nosso processo ainda ser escrito. A preocupação está em ensinar os meios (petições, recursos) adequados para cada demanda ou etapa processual. E vem daí o nosso ranço inquisitório e o apego à forma escrita de processar.
A avalanche processual é tanta que as audiências são consideradas mera etapa processual, pois “atrapalham” o andamento cartorário e dos gabinetes. No Chile cada necessidade de “peticionar” algo ao magistrado demanda o pedido por uma audiência. É na sala de audiência que trabalha o magistrado. Não há gabinetes. Essa medida traduz a simbologia de que aquele é o local onde deve estar o juiz e qual é o seu verdadeiro papel: ouvir e decidir.
Então, é na sala de audiências que as partes fazem requerimentos e é neste mesmo ato que o juiz analisa. Por exemplo, na fase do “juicio oral” são ouvidas as testemunhas, peritos, vítima e há o interrogatório do réu perante três juízes. A sentença é proferida no dia seguinte. Nada fica para depois.
Em vinte e quatro anos de vigência da Lei 9.099/95 pouco se avançou na implementação de uma justiça descomplicada e oral. Pode-se dizer que com o passar dos anos a justiça penal nos juizados especiais está cada vez mais burocratizada, automática, escrita e, consequentemente, antidemocrática e desumana.
A partir do comparativo que fizemos entre o modelo brasileiro de suspensão condicional do processo e o modelo chileno de suspensão condicional do procedimento penal restou evidenciado que, naquele país, o procedimento se dá inteiramente em audiência, porém na presença do juiz de garantias e condicionado a um acordo prévio entre acusação e defesa. Diferentemente do nosso modelo, a suspensão condicional do procedimento penal não representa um “contrato de adesão”, mas sim um acordo entre as partes sob o crivo do magistrado.
A oralidade está assegurada e o juiz concede a palavra primeiramente àquele que peticionou pela audiência. Já no Brasil, há o questionamento por parte do magistrado se o acusado está ciente dos termos propostos pelo Ministério Público e se aceita a suspensão.
Diferentemente do que determina a lei, a denúncia é apresentada por escrito e, com a aceitação da suspensão condicional do processo, o magistrado deve receber ou rejeitar a denúncia. Há casos em que o juiz possibilita ao defensor responder oralmente a denúncia, porém, infelizmente, não é a regra.
Se essa conduta fosse adotada pelos juízes, o critério da oralidade previsto na Lei 9.099/95 teria maior aplicabilidade e, com isso, muitas denúncias seriam rejeitadas, situação plenamente possível segundo a jurisprudência pátria, ainda que o imputado tenha aceitado a suspensão condicional do processo. Assim, contornaríamos de forma emergencial a situação de sobrecarga do Judiciário, uma vez que a defesa apontaria, em audiência, após a aceitação da suspensão condicional do processo, os motivos pelos quais o magistrado deve rejeitar a denúncia.
Ainda há muito para evoluir em sede de juizados especiais criminais, mas o desinteresse em tratar desse tema é geral. Há pouca qualificação para atuação neste meio e as saídas alternativas ao processo penal previstas na Lei n° 9.099/95 são consideradas como banais e de simples aplicação, não demandando, assim, grandes insurgências doutrinárias e judiciais.
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[2] Especialista em Direito Penal Econômico aplicado pela Universidade de Caxias do Sul – ESMAFE. Pesquisadora do Núcleo de Direito Penal Internacional e Comparado da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Conselheira da Associação dos Advogados Criminalistas do Rio Grande do Sul (triênio 2019/2021). Membro da Comissão de Defesa, Assistência e das Prerrogativas dos Advogados da Ordem dos Advogados do Brasil, Seccional Rio Grande do Sul. Advogada Criminalista.
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